Lar é um verbo em construção
Voltei para Atibaia ontem.
Aquela volta que deveria vestir o charme nostĆ”lgico de filme de sessĆ£o da tarde, mas que me calƧou num sapato apertado, estilo Lady Bird quando ela pisa na calƧada do colĆ©gio e percebe que ālarā pode ser só a palavra que cola numa mala de rodinhas.
Hoje cedo, café na mão, dei dois passos pela cozinha em que cresci e me senti a personagem descartÔvel de um set de filmagem: tudo era cenÔrio, nada era meu. As colherezinhas herdadas, o pano de prato manchado, a pia com comida boiando, como se o roteiro dissesse: cena 3, a garota volta e estranha o próprio quintal.
Em São Paulo, o endereço que digito no Uber também não me abraça, lÔ sou figurante em trânsito. Penso na Frances de Frances Ha dançando pela rua, sem pagar aluguel, ensaiando pertencimento no intervalo entre um sofÔ emprestado e outro. Eu, igualzinha: mais endereços no histórico do iFood do que no RG.
E foi assim que, na beira dos meus 21 anos, a epifania bateu: meu maior sonho imobiliĆ”rio cabe num verso de Virginia Woolf āa room of oneās ownā, mas pago em boleto e nĆ£o em papel acadĆŖmico. Quero a pequena grande utopia de ter as próprias chaves, escolher a cor do jogo de cama e decidir se o silĆŖncio toca jazz ou se o barulho toca rock.
Ć muito confuso, porque eu me lembro que jĆ” tive a sensação de encaixe total, num tempo em que eu nĆ£o poderia nem sequer me imaginar em outro lugar. Eu lavava a louƧa sem nojo porque a sujeira era minha, o prato era meu, a bolacha grudada no fundo da xĆcara tambĆ©m. Agora, lavar louƧa aqui Ć© como passar a mĆ£o nos farelos de uma história da qual eu nĆ£o faƧo mais parte.
Por outro lado, seria injusto dizer que não hÔ momentos em que me sinto em casa. Quando estou com meus pais, com meus amigos, com as pessoas que eu amo, hÔ um certo aconchego que nasce na presença delas, um breve descanso, como se a alma tirasse os sapatos por alguns instantes. Mas, ainda assim, no fundo, carrego a sensação de que não pertenço de verdade a lugar nenhum.
Fico me perguntando: se Carrie Bradshaw trocasse Manhattan por açaà na praça do Centro, qual seria a coluna da semana? Talvez ela escreveria, num tom que mistura salto agulha com havaiana, que a verdadeira crise de identidade não é sobre quem beijamos, e sim sobre onde deixamos a escova de dentes sem pedir licença.
E entĆ£o me dou conta de que tento achar ācasaā no CEP, mas ela mora, primeiro, na pele. No direito de ocupar espaƧo. No sofĆ” que range e, ainda assim, me chama de dona. Talvez o primeiro aluguel que a gente paga nĆ£o seja o do apartamento 45, mas o do próprio corpo: mensalidade alta, contrato vitalĆcio, multa se desistir. Depois disso, qualquer kitnet vira palĆ”cio.
Quando o dia acaba, eu me pego rindo da ironia de ter me apaixonado por um delĆrio chamado lar. E sigo cortejando-o, mesmo que ele finja timidez. Porque se Miyazaki ensinou em O Castelo Animado que casas podem ter pernas e sair andando por aĆ, entĆ£o que eu seja a feiticeira aprendiz: penduro quadros na parede invisĆvel, rego plantas em vasos de nĆ£o-lugar, coleciono xĆcaras sem armĆ”rio. Enquanto nĆ£o chega a escritura definitiva, invento pertenƧa no provisório.
Afinal, como diria AmĆ©lie Poulain: āSĆ£o tempos difĆceis para os sonhadoresā. Mas, convenhamos, a gente sonha assim mesmo, e talvez o sonho vire endereƧo, e o endereƧo vire lar, e o lar vire, finalmente, o verbo na primeira pessoa: morar.
Ps: se um dia você ouvir uma risada ecoando entre Atibaia e São Paulo, sou eu assinando o contrato com o vento. Até que a porta certa se abra, sigo ajeitando o tapete na soleira do coração.
Com amor,
Jullia š